segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Suicídio e a arte de Shakespeare



 Hamlet:


“Ser ou não ser — eis a questão. Será melhor nobreza de alma sofrer a fundo os reveses de uma sorte ultrajante ou agarrar em armas contra um mar de infortúnios? Morrer, dormir, nada mais. Acalmar por fim no sono os desgostos do coração, e que sorte mais ardentemente desejada para todos os males que foram herdados? Morrer, dormir; dormir... talvez sonhar. Aí é que está o busílis! Mas que sonhos se podem esperar desse sono de morte, após nos libertarmos desta vida? Alto aí! Esta consideração prolonga a calamidade da vida, porque de contrário quem suportaria os agravos e ironias do mundo, as prepotências do opressor, os insultos do orgulhoso, os males de um amor desprezado, os atrasos da justiça, a insolência do poder, o desdém que os mais merecedores recebem dos indignos, quando poderia encontrar a sua própria quietude? Quem poderia suportar todas as agruras, protestando contra um fardo tão pesado, se não receasse qualquer coisa depois da morte, nessa misteriosa região de onde nenhum viajante regressa? Eis aí o enigma que nos obriga a aguentar todos os males do que procurarmos outros de que nada se conhece. E é por isso que essa consciência faz de nós covardes, é assim que a imaturidade das nossas decisões estiola à pálida sombra do pensamento, é assim que os nossos atos de maior esforço e alcance se desviam da sua rota e perdem a sua ação.”


Será que os constrangimentos e os limites da condição humana justificam só por si prolongar a existência?


A simplicidade do dilema contrasta com a impossibilidade da decisão; o movimento interno do texto, com a alternância de fluxo e refluxo, exprime bem o tecido das esperanças e decepções próprias da condição humana. Não será a condição humana um acumular de males e frustrações, humilhações, injustiças, penas sentimentais, dores físicas, fracassos imerecidos, desprezo e indiferença de toda a ordem por parte dos senhores, do poder e dos mais orgulhosos? Essa acumulação é que faz de cada existência “Uma sombra movente, um pobre comediante, que atua por momentos no palco e depois deixa de se escutar, mas trata-se de uma história contada por um idiota, cheia de ruído e de furor, que não faz grande sentido”, diz Macbeth. Então, porque não pôr de imediato fim a essa vida tão absurda e penosa e deslizar depois num sono eterno? Simplesmente por termos medos do desconhecido, não por receio da morte, esse temor do que se pode depois encontrar. A nossa consciência e a nossa imaginação protegem-nos contra o suicídio e faz-nos permanecer suspensos entre a vida e a morte.


Hamlet é um ator, como todos nós e situa-se entre a loucura e a lucidez que é a sorte de cada um. A sua questão é a do homem. Hamlet está entre a vida e a tentação do suicídio.


William Shakespeare, cuja obra se estende de 1589 a 1613, estuda em 52 suicídios todas as facetas, todas as circunstâncias e todos os motivos desse ato. De certa maneira, a sua imensa obra é uma longa variação sobre o tema de ser ou não ser, como dilema formulado no apogeu da sua arte.


Shakespeare não se revela como um moralista, e sim um observador da condição humana. Não faz apologia ao suicídio. Uma das suas observações mais penetrantes é a oposição entre falar e agir. Hamlet, a personagem que mais fala em suicidar-se, não comete o ato. Entretanto, aqueles que se suicidam fazem-no quase sem aviso. Na interminável fala, Lucrécia acaba por dar se conta de que corre o risco de desviar se desse ato decisivo, pesando demoradamente as suas razões: “Esta inútil nuvem de palavras não faz justiça”. Falar muito em suicídio amolece a sua resolução: há aí um começo de terapia pela desmistificação dos verdadeiros motivos do suicídio, que se mostram essencialmente egoístas.


Se Shakespeare fala tanto de suicídio, é para nele se reconhecer o mistério. Na sua diversidade, os suicídios contemplam todos os pontos de vista possíveis e, ao mesmo tempo, reduzem-nos a nada.

 

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