Sei que me compreenderás completamente.
Talvez, eu esteja um pouco nostálgica com algumas lembranças de minha infância.
Estou indo - estou chegando a lugares
distantes em minha memória... Agora o chão corre depressa, as luzes
brilham na noite. Curva-se, inclina-se e sobe. Já não toca mais o
solo. Estou dentro de uma nuvem rasa. Afastam-se
as casas, todas as moradias tornam-se pequenas e reluzentes. Agrupam-se
em vilarejos.
Estar acima e observar o todo sem pormenores.
Embaixo, partículas, cheia de detalhes. Eu não sei se prefiro os detalhes... Ou
a completude indetalhada. De certo que o todo tem organização. Mas, os detalhes
são tão complexos; o jogador com uma única carta na mão a desvendar todo o
baralho...
Sobe...
Na janela, a neblina enche de claro o marrom escuro. Raios entrecortando
a paisagem invisível. É o Cumulus Nimbus.
O voou segue em crise. O problema aconteceu na decolagem.
No escuro, só se vê o letreiro em vermelho que pede para atar os cintos. Estou
presa de pavor. A sensação a qual viajo é de chegar ao meu destino e não mais
voltar. E de outro modo paradoxo a leve surpresa de gostar de voar.
Espreitam-me algumas descobertas.
-Lembra que brincávamos? Nós como se fossemos crianças; eu estava
dirigindo um filme na vida real, um filme em minha própria vida e se
estilizaria a uma comédia romântica. Como seria estar sem roteiros, sem
personagens, sem a forma a qual idealizo. Ainda possível nossas existências?
Minha mente em fragmentos...
Acordo agora,
o relógio em formato de casa,
o interruptor do quarto é um soldado.
Vou à escola
e o relógio me intriga...
Os ponteiros são de um
eterno verde,
os algoritmos tem vida própria...
Num algarismo existe um universo.
No universo do relógio existe o tempo.
Eu triste por não ser a linha...
Não estou sequer na curva do tempo...
-Terei que compor frases para quebrar a barreira
entre a minha mente e os outros...
Aquela sou eu,
com culpa sentada no banquinho,
não brinco,
não falo..
e ninguém sabe a minha culpa...
Não tenho medo do gelado...
Aquela sou eu na neve.
Sobrevoando o mar, num momento de reflexão
que acomete a quem viaja ao fitar o oceano, percebi que em toda minha vida
tenho procurado por algo que não sei o nome.
Então, o homem sentado ao lado da janela começou uma troca de palavras,
enquanto tremíamos no ar. Em
um momento, a turbulência cedeu. E
todos estavam aliviados, a aeromoça começou a servir os passageiros e começamos
a cair.
O homem fala comigo tranquilamente
como se aquilo não estivesse acontecendo, como se não existisse aquele momento
pavoroso. Como se estivéssemos a nos olhar e a trocar palavras em um planeta
vazio de imagens. Nós imagens e palavras de um planeta inteiro. Em perfeita
relação de calma e ternura que estranhamente escondia-se em um pequeno universo
dentro do caos. Segurou
minha mão e permaneceu assim durante toda a viagem, suave e com timidez.
Protegendo a mim de todos os temores. Nada
falamos sobre estarmos de mãos coladas, continuamos conversando como dois
desconhecidos.
Era proibido falar de nossas emoções. Era
aquele silêncio apaixonado. O Silêncio de quando não há intimidade. Ele
fala como se não fossemos morrer, como se esse momento fosse eterno, eterno na
repetição do presente para sempre...
Os minutos
eram longos e eu lhe perguntava a hora a cada dois minutos, ele respondia todas
as vezes, pacientemente...
E quando o
avião começou a descer depressa, víamos uma cidade se aproximar... Ele encostou
ao lado da janela para que eu pudesse me aproximar. Meu rosto junto ao dele, a sua
voz tranquila...
-Olha ali, que lindo! Estamos chegando, veja
Brasília! Você vê por ali? Ali são as asas do avião e o meio dele, o corpo...
-Estamos chegando! E o avião desce tão depressa...
E quando pousou, o piloto anunciou:
- Bem vindos ao aeroporto de Confins em Belo
Horizonte.
Foi um pouso de emergência, havia bombeiros nos
esperando na pista... Não eram as tais asas, o tal corpo...
A Velha Senhora humilde - disse
- menina, não precisa ter medo. Quando chega a hora de morrer, é a hora. Posso
estar em casa, avião ou em qualquer situação e isso ocorrerá. Será na minha
hora, a hora que Deus quiser.
A inocência de nunca ter questionado sua
cultura, os seus costumes, as suas crenças. A falta de pensar sobre, a falta de
ciência no olhar livrou-a do pavor. Para ela foi como uma coisa banal. Sem
sofrimentos.
O homem lançou um olhar para mim, como quem
contemplava comigo a inocência da senhora... Erámos indivisíveis. Pensávamos no
silencio e sempre igual. Continuou com seus grandes olhos castanhos
fixos em mim... Porquanto desciam as pessoas do avião, um longo olhar. E foi
doce.
Um olhar cheio de sentimentos. Senti
vontade de dizer-lhe: eu te amo, e não era apenas um dizer. Era emoção que
transbordava, eu sentia, eu o amava. Mas, ao invés de palavras, retribui o
olhar. Com olhos de artista, com grande surpresa infantil.
No aeroporto outro homem me esperava, trazia uma
criança consigo que sorria para mim e me consolava a perda do meu mais recente
amor. Só por ela foi possível essa transição.
Ainda o vi de longe perdido por entre as pessoas e
perdido em mim em meus novos momentos. Em minha nova realidade
.
Esse sorriso terno de felicidade da criança em me
rever foi tão singular quanto o meu amor... Representações nunca antes vistas
por mim.. E talvez singulares no mundo inteiro. Às vezes tenho em mim
expressões verdadeiras, mas, nem sozinha diante do espelho quando é possível
tirar algumas máscaras, posso revela-las.
No espelho me pergunto, e não assimilo que aquela
então sou eu... E confusa duvido ainda. Essa sou eu ou a outra que não está
comigo em imagem. E em imagem não sei se meus olhos refletem a mesma imagem que
outros veem... a visão não é um sentido exato.
Ah, os olhos não enxergam, interpretam
E sem isso não somos mais humanos e sim maquinas
de repetição. Mas, tudo é repetição. Sobretudo, é original a reformulação do
passado para o presente, a interpretação em si. O mundo externo uma
projeção de nosso eu. Enquanto o mundo externo não se move, move-se dentro dos
olhares. De outro modo estamos presos a condenação do olhar idêntico, de
regimes totalitários... Escravos de misérias conformados em suas repetições...
-Me escutas?
Sei que não gostas quando não acredito em
Deus, quando não acredito no místico, quando não acredito na ciência...
Mas vê! Eu descobri uma coisa... Como seria possível acreditar em tais sentimentos,
em tais fantasias, sem fé?
Eu tenho religiosidade e fé e não tenho religião. A minha religião é expressa na
loucura que trago para as palavras e para aquilo que ninguém pode ver...
O amor é uma religião no sentido de nada fazer
sentido de não haver ciência, por não haver exatidão, verdades comprovadas...
Acredito
em fantasias... Amo com tanta convicção...
Que posso dizer que tudo que o que tenho em mim é
expresso como religião. A cultura não abalou.
Com olhos cegos, eu sou incomunicável para o mundo. E te escrevo para dizer que
agora, nesse momento você é a minha religião, a minha fé, como um deus e você
existe único em meu mundo, em minhas metáforas que talvez não possas ver. Mas sei
que sou mais sincera a ti do que ao espelho.
E podes chegar a questionar então que o amor
em mim é sempre igual e que se saíres da cena de nosso filme poderei
continua-lo de mesmo modo. Não! Não é o mesmo amor. O amor está em mim como
uma fonte única... Mas os objetos são outros... A crença é outra, nunca a
mesma. E gosto da tua. Gosto desse mundo. Até que seja destruída em mim a
crença do teu mundo... Até que seja destruída em mim as minhas fantasias do teu
mundo tão colorido.
E saio agora desse templo frio.