quinta-feira, 19 de maio de 2022

Dramaturgia

 

O cenário constitui-se num tom cinza, todas as personagens trajam-se em tons de cinza, às vezes o tom cinza tende para o branco, às vezes para o preto faz um contraste como se a peça fosse uma exibição de um filme em preto e branco... 

Inicia-se com o cenário vazio. O público observa por um instante o cinza do cenário. A destruição e ruínas.  Uma névoa que vai surgir do chão, algumas opções em que o público poderá sentar será num retângulo no meio da encenação.  E outra parte do público assiste a peça fora do cenário.  (o bilhete da peça será um par de luvas cinza de malha).


A primeira personagem a chegar à cidade fantasma, é uma espécie de filósofo, projeta-se um filme numa tela de cinema.  Este filme é cinema mudo,  com aspecto de uma memória não tão distante. Esse filme mostra uma criança em um balanço, a imagem em preto e branco. De dentro do filme começam a cair folhas secas reais, e começa a chover folhas na plateia. Elas  espalham-se pelo chão, por essas folhas caminha, fora da tela, o filósofo que diz, a andar

(O vídeo oscila em mostrar uma criança no balanço e uma pessoa numa situação urbana.)


Anjo  (andando pela cidade):

- Quando a criança era criança,

andava balançando os braços,

queria que o riacho fosse um rio,

que o rio fosse uma torrente

e que essa poça fosse o mar.


Quando a criança era criança,


não sabia que era criança,

tudo lhe parecia ter alma,

e todas as almas eram uma.


Quando a criança era criança,


não tinha opinião a respeito de nada,

não tinha nenhum costume,

sentava-se sempre de pernas cruzadas,

saía correndo,

tinha um redemoinho no cabelo

e não fazia poses na hora da fotografia.


Quando a criança era uma criança


era a época destas perguntas:

Por que eu sou eu e não você?

Por que estou aqui, e por que não lá?

Quando foi que o tempo

começou, e onde é que o espaço termina?

Um lugar na vida sob o sol não é apenas um sonho?

Aquilo que eu vejo e ouço e cheiro

não é só a aparência de um mundo diante de um mundo?

Existe de fato o Mal e as pessoas

que são realmente más?

Como pode ser que eu, que sou eu,

antes de ser eu mesmo não era eu,

e que algum dia, eu, que sou eu,

não serei mais quem eu sou?

Quando uma criança era uma criança,

Mastigava espinafre, ervilhas, bolinhos de arroz, e couve-flor cozida,

e comia tudo isto não somente porque precisava comer.

Quando uma criança era uma criança,

Uma vez acordou numa cama estranha,

e agora faz isso de novo e de novo.

Muitas pessoas, então, pareciam lindas

e agora só algumas parecem, com alguma sorte.

Visualizava uma clara imagem do Paraíso,

e agora no máximo consegue só imaginá-lo,

não podia conceber o vazio absoluto,

que hoje estremece no seu pensamento.

Quando uma criança era uma criança,

brincava com entusiasmo,

e agora tem tanta excitação como tinha,

porém só quando pensa em trabalho.

Quando uma criança era uma criança,

Era suficiente comer uma maçã, uma laranja, pão,

E agora é a mesma coisa.

Quando uma criança era criança,

amoras enchiam sua mão como somente as amoras conseguem,

e também fazem agora,

Avelãs frescas machucavam sua língua,

parecido com o que fazem agora,

tinha, em cada cume de montanha,

a busca por uma montanha ainda mais alta, e em cada cidade,

a busca por uma cidade ainda maior,

e ainda é assim,

alcançava cerejas nos galhos mais altos das árvores

como, com algum orgulho, ainda consegue fazer hoje,

tinha uma timidez na frente de estranhos,

como ainda tem.

Esperava a primeira neve,

Como ainda espera até agora.

Quando a criança era criança,

Arremessou um bastão como se fosse uma lança contra uma árvore,

E ela ainda está lá, chacoalhando, até hoje.

(Ele carrega duas latas de tinta. Dentro da lata de tinta há um pó completamente negro e na outra um completamente branco, e ele faz uma mistura entre os dois, numa alquimia e espalha pelo chão um misterioso elemento que reluz. 

Começa a surgir no cenário, uma iluminação laranja esfumçada


Valmir e Estragado, 

Os dois estão sentados numas caixas de papelão no chão debaixo de uma grande árvore de natal que balança... 

Os dois estão a segurar na mão uma pedrinha 

estão sujos, maltrapilhos e usam um chapéu coco...

 

Fim de tarde, Estragado tenta tirar um coturno de construção, faz força com as duas mãos gemendo. Para, exausto; descansa ofegante; recomeça mais uma vez. 

Estragado: (desistindo de novo) Nada a fazer. 

Valmir: (aproximando-se a passos curtos e duros, joelhos afastados) Estou quase acreditando. (fica imóvel) Fugi disso a vida toda. Dizia: Valmir, seja razoável, você ainda não tentou de tudo. E retomava a luta. (encolhe-se, pensando na luta, Vira-se para Estragado) Veja só! Você aqui de volta.

Estragado:

Estou?

Valmir:

Que bom que voltou. Pensei que tivesse partido para sempre. 

Estragado:

Eu também

Valmir: 

Temos que comemorar, mas como? (pensa) Levante que lhe dou um abraço. (oferece a mão a estragado.)

Estragado

(irritado) Daqui a pouco, daqui a pouco. 

Silêncio... 

Valmir:

(magoado, com frieza) Pode-se saber onde o senhor passou a noite?

Estragado:

No canal

Valmir:

(Espantado) Num canal! Onde?

Estragado:

(sem indicar) Logo ali, na Agamenon. 

Valmir:

E eles bateram em você? 

Estragado:

Bateram, mas não demais. 

Valmir: 

Os mesmos de sempre?

Estragado:

Os de sempre? Não sei. 

Silêncio

Valmir:

Quando paro para pensar... estes anos todos... não fosse eu.. o que teria sido de você...? (Com firmeza) Não seria mais do que um montinho de ossos, neste exato momento, sem sombra de dúvida. 

Estragado:

(Ofendido) E daí?

Valmir

(Melancólico) É demais para um homem só. (Pausa. Com vivacidade) Por outro lado, qual a vantagem de desanimar agora, é o que sempre digo. Deveríamos ter pensado nisso milênios atrás, em 1900. 

Estragado:

Chega. Ajude aqui a tirar essa porcaria. 

Valmir:

De mãos dadas, pular do alto da torre Malakoff, os primeiros da fila. Éramos gente distinta, naquele tempo. Agora é tarde demais. Não nos deixariam nem subir. (Estragado luta com a bota)  O que você está fazendo?

Estragado: 

Tirando minha bota. Nunca aconteceu com você?

Valmir

Sapatos a gente tira todos os dias, cansei de explicar. Por que você não me ouve?

Estragado:

(cansado) Me Ajude!

Valmir: 

Dói?

Estragado

Dói! Ele quer saber se dói!

Valmir 

(colérico) Tirando você, ninguém sofre. Eu não conto. Queria ver se estivesse no meu lugar, o que você diria. 

Estragado: 

Doeu?

Valmir:

Doeu! Ele quer saber se doeu!

Estragado:

(apontando com o indicador) De qualquer modo, você bem que poderia fechar os botões. 

Valmir:

(inclinando-se) É verdade. (abotoa-se) Nunca descuide das pequenas coisas. 

Estragado: O que você queria?  Você sempre espera até o último minuto. 

Valmir (sonhador) O Último minuto.... (Medita) custa a chegar, mas será maravilhoso. Quem foi que disse isso?

Estragado:

Por que você não me ajuda? 

(A cena é cortada por uma iluminação que vem do alto, desce uma moça de classe média alta do Recife. Ela desse por um pano. Sobrevoa a cidade. Estragado e Valmir continuam a conversar, porém inaudíveis ao publico. Fazem mímica de suas conversas e vão se dispersando na luz. Até ficarem apagados em cena. A moça vai descendo devagar e passa despercebida por Valmir e estragado. )

O Anjo reaparece em cena, completamente imóvel dando a impressão de ser invisível. A iluminação só ilumina a sua sombra de homem, enquanto a moça anda por volta dele, completamente iluminada e ele uma sombra escura.

Ela dá uma volta em seu corpo, e diz:

Cecília:

Vejo-o vindo pelo ar, num voo lento.

Suspenso num olhar, acima de tudo clandestino contornando a paisagem escura.

Eis então que se revela descansando na janela, e me toca sem contato..

Tua face, teu amor sem dono...

(some a sombra do anjo)

A personagem desperta de um estado hipnótico.

Valmir pede-lhe uma esmola, mas, ela passa apressada. Quer chegar a algum lugar, a algum compromisso. Não escuta o pedido de Valmir. 

Ela anda pela cidade, apenas transita, como quem transita de um lugar para outro. Sem contemplação

(O telão mostra o fluxo da av. conde da boa vista.


(continua)


-  Fim do primeiro ato


(A peça pretende ter a estética do absurdo remontando a filosofia estética de Albert Camus, personagens reesignificados de Samuel Beckett, e elogio ao cinema, em linguagem pós moderna. Texto dito na linha realista com algumas quebras da quarta parede. Regionalismo moderno metáfora da metrópole recifense).

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Os Degraus

 Só a incantacão de ti me renasce destas cinzas, quando me fixo e arredo o aluvião das horas. Na elisão do tempo, desço os degraus de ti, com suavidade, para não fazer ruído, que turve a quietação.

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

O Absurdo


 A ideia do absurdo parte do filosofo e escritor Albert Camus, que explorou o absurdo em diversas obras principalmente em: A Peste, e, O Mito de Sísifo.

É a primeira formulação teórica da noção de absurdidade, isto é, da tomada de consciência pelo ser humano, da falta de sentido ou, portando, do sentido absurdo de sua condição. 

o “homem absurdo” é o que enfrenta lucidamente a condição – e a humanidade – absurda. 


Em outras palavras o absurdo é aquilo que escapa aquilo que está no intangível, na ordem do indizível.

Há no absurdo uma pulsão de morte, aquilo que não pode ser simbolizado. Aquilo que pertence ao real que vai muito “além do principio de prazer”.

Derrida discorre em sua obra bastante desta desconstrução. Em seu texto chamado “Freud e a cena da escritura”, O filósofo serviu-se da psicanálise para pensar de que forma surge o simbólico, de que forma o não simbólico desemboca no simbólico. No modelo das máquinas e aparelhos freudianos, o inconsciente é uma escritura que se tece de diferenças, de trilha-mentos, e envia, delega representantes mandatários compreendidos a posteriori.


 A escritura é a possibilidade de instituir, de inscrever. A palavra analítica, o ato do sujeito falar para um outro que o reenvia ao eco de sua própria voz, é um trabalho da escritura psíquica. Por isso segundo o filósofo, Freud teria representado o conteúdo psíquico por um texto de essência irredutivelmente gráfica: a estrutura do aparelho psíquico é como uma máquina de escrever que se lê de uma arquiescritura sinaliza a condição da possibilidade da própria significação enquanto torna-se signo do traço. 

Para Derrida, que se alinha ao Freud preocupado com o enraizamento do não-simbólico, a repetição está desde o início, mas não é nunca repetição do mesmo. Na origem, apenas ausência, vazio.

“Movimento do Mesmo em direção ao Outro que não retorna jamais ao Mesmo.” (Derrida)


Camus o escreveu no começo da segunda guerra mundial. Porém ele não se detém ao problema da guerra e a rejeita radicalmente nas entrelinhas, fazendo do “homem absurdo” o último a poder aceita-la ou a compactuar com suas aberrações.

“A grandeza mudou de campo. Ela está no protesto e no sacrifício sem futuro”.  (Camus)


Camus contou com enormes precursores, que foram ao fundo do desenvolvimento moderno – Como Nietzsche, Dostoiévski, Proust, Kierkegaard, Kafka. E chega aos desdobramentos das revoluções de Darwin, Marx, Freud, Einstein. 


Ao mesmo tempo que o “homem absurdo” se exprimiu em toda sua verdade na literatura, no teatro e em outros campos ou vertentes da arte e do pensamento de: Jorge Luis Borges e a dramaturgia teatral de autores como Beckett, Ionesco, Genet, Pinter, Albee, Arrabal – e tantos outros escritores contemporâneos. 


O Teatro do Absurdo


No "Teatro do Absurdo" não há narrativas lineares, não há privilégio de uma trama, a história não é importante porque reduzida a uma cena com imagens, concretas e poéticas. Há como que uma tentativa de fixar, numa única imagem, o sentido total da existência. As situações parecem estranhas, pois são colocadas, mesmo as mais familiares e quotidianas, em esdrúxulos contextos que as tornam incompreensíveis. As condições mais simples são hiperdimensionadas e, por outro lado, trivializam-se aspectos sérios.

Não importam muito as posições sociais e o contexto histórico

dos personagens que são, a um só tempo, cultas, bem informadas, mas se comportam como se fossem insensíveis, mecânicas e idiotizadas. 


O automatismo de gestos, atitudes, comportamentos, culmina por apresentar o indivíduo alienado em atos e linguagem. Ponto relevante para a psicanálise,

a questão da linguagem revela, em seus diálogos, a impossibilidade de comunicação. Embora deteriorada, automatizada e insuficiente, a linguagem revela-se indispensável para pretender recobrir o vazio da solidão.··.


O diálogo é opaco, vazio e a linguagem parece apontar para si mesma, sem transparência ou lógica discursiva. A função poética predomina com um

jogo de imagens, sublinhando o engessamento das expressões convencionais e esvaziando osentido. (Mendes, 1995/6)


Ao lado disso, evidencia-se a sátira aos costumes, à sociedade, às convenções de toda sorte. É um novo conceito do trágico e do cômico. Neste tipo de

convenções-contravenções existe uma atualização do "nonsense"

reafirmando a função econômica do cômico.


O "non-sense" ressalta a alienação entre a linguagem e a ação, apontando o tempo inteiro para a impossibilidade de comunicação.


O "non-sense" se propõe a esvaziar as palavras do seu valor, para confirmar a dificuldade de comunicação e a alienação do homem na linguagem. A situação

paralisada do cenário visa representar o homem na sua inação.


As personagens parecem atuar como se tivessem um pacto - firmado entre si. Têm um código, ao qual o espectador não tem acesso - fazem-se alusões

constantes a algo que nunca é a coisa-em-si. 

É o teatro da alusão e não da ilusão, porque o momento dramático parece circular, voltando, invariavelmente, ao início; a curva dramática não é bem definida.


Melhor dizendo, é o teatro do desejo que não sendo respondido, retorna sempre ao ponto de partida, para recomeçar, numa busca incessante. Quanto ao "non-sense", surge de repente como o próprio inconsciente, no correr do discurso consciente, aflorando, inesperadamente, no tropeço, lapso ou claudicação.


O "non-sense" é a possibilidade da fenda, do surgimento do inconsciente.


Além disso, é a impossibilidade da linguagem para o sujeito, no entanto, a sua única saída para a inserção na comunidade dos falantes e na sociedade.

Sua pseudo-autonomia de sujeito assegurada pela sujeição ao código da linguagem, falha, insuficiente e incapaz de lhe permitir exprimir-se integralmente. Permitindo, no não dito, a verdade inalcançável.


Esta nova dramaturgia desmascara a linguagem expondo a desconexão, mostrando como as palavras e conceitos que elas evocam nos são familiares, porém, o contraste, a elipse, uma premeditada descontinuidade aliada ao improviso não lhes permite alcançar o sentido convencional.


Desse modo, os autores criam um mundo próprio, auto-suficiente pretendendo relacionar abstrações linguísticas que criam, com a essência da condição humana, abordando temas como a solidão, o silêncio, o tempo, a impotência e a sensação de abandono.

Suicídio e a arte de Shakespeare



 Hamlet:


“Ser ou não ser — eis a questão. Será melhor nobreza de alma sofrer a fundo os reveses de uma sorte ultrajante ou agarrar em armas contra um mar de infortúnios? Morrer, dormir, nada mais. Acalmar por fim no sono os desgostos do coração, e que sorte mais ardentemente desejada para todos os males que foram herdados? Morrer, dormir; dormir... talvez sonhar. Aí é que está o busílis! Mas que sonhos se podem esperar desse sono de morte, após nos libertarmos desta vida? Alto aí! Esta consideração prolonga a calamidade da vida, porque de contrário quem suportaria os agravos e ironias do mundo, as prepotências do opressor, os insultos do orgulhoso, os males de um amor desprezado, os atrasos da justiça, a insolência do poder, o desdém que os mais merecedores recebem dos indignos, quando poderia encontrar a sua própria quietude? Quem poderia suportar todas as agruras, protestando contra um fardo tão pesado, se não receasse qualquer coisa depois da morte, nessa misteriosa região de onde nenhum viajante regressa? Eis aí o enigma que nos obriga a aguentar todos os males do que procurarmos outros de que nada se conhece. E é por isso que essa consciência faz de nós covardes, é assim que a imaturidade das nossas decisões estiola à pálida sombra do pensamento, é assim que os nossos atos de maior esforço e alcance se desviam da sua rota e perdem a sua ação.”


Será que os constrangimentos e os limites da condição humana justificam só por si prolongar a existência?


A simplicidade do dilema contrasta com a impossibilidade da decisão; o movimento interno do texto, com a alternância de fluxo e refluxo, exprime bem o tecido das esperanças e decepções próprias da condição humana. Não será a condição humana um acumular de males e frustrações, humilhações, injustiças, penas sentimentais, dores físicas, fracassos imerecidos, desprezo e indiferença de toda a ordem por parte dos senhores, do poder e dos mais orgulhosos? Essa acumulação é que faz de cada existência “Uma sombra movente, um pobre comediante, que atua por momentos no palco e depois deixa de se escutar, mas trata-se de uma história contada por um idiota, cheia de ruído e de furor, que não faz grande sentido”, diz Macbeth. Então, porque não pôr de imediato fim a essa vida tão absurda e penosa e deslizar depois num sono eterno? Simplesmente por termos medos do desconhecido, não por receio da morte, esse temor do que se pode depois encontrar. A nossa consciência e a nossa imaginação protegem-nos contra o suicídio e faz-nos permanecer suspensos entre a vida e a morte.


Hamlet é um ator, como todos nós e situa-se entre a loucura e a lucidez que é a sorte de cada um. A sua questão é a do homem. Hamlet está entre a vida e a tentação do suicídio.


William Shakespeare, cuja obra se estende de 1589 a 1613, estuda em 52 suicídios todas as facetas, todas as circunstâncias e todos os motivos desse ato. De certa maneira, a sua imensa obra é uma longa variação sobre o tema de ser ou não ser, como dilema formulado no apogeu da sua arte.


Shakespeare não se revela como um moralista, e sim um observador da condição humana. Não faz apologia ao suicídio. Uma das suas observações mais penetrantes é a oposição entre falar e agir. Hamlet, a personagem que mais fala em suicidar-se, não comete o ato. Entretanto, aqueles que se suicidam fazem-no quase sem aviso. Na interminável fala, Lucrécia acaba por dar se conta de que corre o risco de desviar se desse ato decisivo, pesando demoradamente as suas razões: “Esta inútil nuvem de palavras não faz justiça”. Falar muito em suicídio amolece a sua resolução: há aí um começo de terapia pela desmistificação dos verdadeiros motivos do suicídio, que se mostram essencialmente egoístas.


Se Shakespeare fala tanto de suicídio, é para nele se reconhecer o mistério. Na sua diversidade, os suicídios contemplam todos os pontos de vista possíveis e, ao mesmo tempo, reduzem-nos a nada.

 

Uma carta de Santo Tomás de Aquino

 

Tradução & Notas - Maria Clara Pinheiro Skotbu, Rafael R. Daher


Apresentação – Maria Clara Pinheiro Skotbu


 Na filosofia tomista, a categoria de “possivel” se actualiza mediante a acção de uma causa ou convergência de causas.

 O que quis Santo Tomás de Aquino demonstrar a um cavaleiro nobre que na Idade Média exercia a função militar…

O texto que se traduz é uma carta dirigida a um cavaleriro que andava envolvido em questões com o Imperio Romano-Germãnico e os direitos do Papa

Faz-se notar a importancia da astrologia e da alquimia nesse tempo e também é importante em relação à atitude de S.Tomas de tomar o tema como objecto de análise racional, o que permite verificar que ele foi sensível aos casos que nào eram explicáveis à luz do quadro conceptual herdado da teoria aristolelico, o que o leva a encontrar razões, algumas compatíveis com a fé e a sua teoria das almas separadas, dos milagres e do poder do espiritual modificar o material.

A verdade natural e divina não pode ser mudada pelo homem através de leis monarquicas, eclesiásticas ou decretos papais. Seguirá Tomás de Aquino em brilhante demonstração filosófica sobre as operações ocultas da natureza.

(Ultramontano termo que vem da região além das montanhas era metonímia usada na época em que vivia Tomás de Aquino para designar um papista aquele então tomava posição pelo Papa contra o Império na querela das Investiduras.)

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Para um certo cavaleiro além das montanhas

Sobre os trabalhos ocultos da natureza ou sobre a causalidade dos corpos celestiais

Posto que em alguns corpos naturais surgem certas atividades naturais cujos princípios não podem ser compreendidos, Vossa Excelência pediu que eu escrevesse o que penso sobre eles. De fato, vemos que o corpo segue os movimentos de seus elementos governantes. Uma pedra, por exemplo, é movida em direção ao centro e segundo a propriedade da terra, sua governante. Os metais também têm o poder de resfriar segundo a propriedade da água. Portanto, todas as ações e movimentos, quaisquer que sejam, de corpos compostos de elementos ocorrem segundo a propriedade e o poder dos elementos dos quais tais corpos são feitos . Agora, tais ações e movimentos têm uma origem clara, sobre a qual não há dúvidas. Mas há alguns funcionamentos desses corpos que não podem ser causados pelos poderes dos elementos: por exemplo, o ímã atrai o ferro e certos remédios purgam determinados humores em determinadas partes do corpo. Ações desse tipo, portanto, devem ser atribuídas a princípios mais elevados.

Precisamos considerar que um agente de categoria inferior atua ou é movido segundo o poder de um agente superior de duas formas: a primeira, na medida em que a ação dele procede, segundo uma forma e poder conferidos por um agente superior, como a lua iluminada pela luz recebida do sol. Por outro lado, atua apenas por força do agente superior, sem receber forma de agir. Ele é movido apenas pelo movimento do agente superior, como um carpinteiro usa uma serra para serrar. O ato de serrar é, de fato, primeiramente o trabalho do artesão, mas secundariamente da serra, na medida em que esta é movida pelo artesão, mas não porque tal ação siga alguma forma e poder que poderia permanecer na serra depois que o artesão a usou. Se, então, os corpos elementares participam das ações ou movimentos de agentes superiores, deve ser por uma ou outra das formas acima mencionadas; ou as ações resultam de formas e poderes implantados por agentes superiores nos corpos elementares, ou as ações meramente seguem o movimento dos corpos elementares pelos agentes superiores.Os agentes superiores além da natureza dos elementos e corpos elementares não são apenas corpos celestes, más também substâncias superiores distintas. Cada um deles produz nos corpos inferiores ações ou movimentos que não surgem de uma forma já implantada nos corpos inferiores, mas que provêm unicamente do movimento dos agentes superiores. Pois o mar, em sua arrebentação e retração, tem esse movimento do superior, além da propriedade do seu elemento, isto é, pela força da lua, não por meio de uma forma implantada na água, mas pelo movimento da lua, que faz a agitação. Então, novamente, as imagens nigromantes têm efeitos que não emanam da forma que receberam, mas dos demônios ativos em tais imagens. E pensamos que a mesma coisa às vezes acontece por meio da ação de Deus ou dos anjos benfazejos. Temos os fatos dos enfermos que foram curados à sombra do Apóstolo Pedro ou de alguma doença que se dissipou ao entrar em contato com as relíquias de um santo, o que não atribuímos a uma forma implantada nesses corpos, mas apenas ao poder divino que usa os corpos para tais resultados.

É claro, nem todos os funcionamentos dos corpos elementares que manifestam operações ocultas são assim. Em primeiro lugar, tais operações não surgem de alguma forma já implantada, posto que não são encontrados ordinariamente em todos os indivíduos da mesma espécie: nem todos os ossos e nem todas as relíquias dos santos curam ao toque, mas as de alguns e em alguns momentos, sim. E, portanto, nem todas as imagens têm efeitos desse tipo, nem toda água flui e reflui segundo o movimento da lua. Na verdade, os funcionamentos ocultos encontrados em alguns corpos também são encontrados em todos os que são da mesma espécie, como em “todo ímã atrai ferro”. É por isso que essas atividades surgem de um só princípio intrínseco presente nas coisas da mesma espécie. Em segundo lugar, as atividades mencionadas acima nem sempre procedem o mesmo resultado pelos mesmos meios. A prova evidente disso é que elas não procedem de um poder residente e permanente, mas apenas do movimento de um agente superior, assim como a serra nem sempre corta a madeira colocada em contato com ela, mas apenas quando movida para este fim por um artesão. Certas operações ocultas, entretanto, são sempre passivas e precisam ser postas em uso, para que produzam os mesmos efeitos – como o ruibarbo, que sempre purga um humor típico . E disso conclui-se que a ação decorre de algum poder residente e permanente no corpo.

Resta agora considerar aquele princípio intrínseco permanente do qual procedem tais atividades. Certamente, este princípio é aquilo que chamamos de potência, pois é aquilo pelo qual um agente age ou sofre uma ação. De fato, essa potência é assim chamada devido ao limite da ação possível de qualquer coisa que receba o nome e a descrição de poder. De fato, essa potência conforme referida ao limite da atividade possível de qualquer coisa recebe o nome e a descrição de poder. Portanto, o poder que é o princípio de tais ações e paixões é visto como derivado, principalmente por conta da forma específica de uma coisa, posto que todo acidente que é próprio de uma espécie é derivado dos princípios essenciais da mesma espécie. Então, para explicar as paixões características de seus efeitos, tomamos como causa uma definição que designa os princípios essenciais das coisas: mas o princípio da essência do objeto é uma forma existente em determinada matéria. Desta forma, tais poderes devem proceder das formas das coisas, segundo a existência em suas próprias matérias.Em segundo lugar, posto que a natureza de uma coisa é chamada de sua forma e matéria, se houver algum poder de uma coisa que não é delas derivado, consequentemente não será um poder natural para a coisa e nenhuma atividade ou paixão procedente de tal poder será natural. Mas tais atividades além da própria natureza não são duradouras; por exemplo, a água só fica quente quando aquecida; mas as atividades ocultas que agora tratamos são sempre idênticas ou o são no tanto quanto possível. Daí a conclusão: tais poderes são essenciais em tais ações e procedem de uma forma conforme existente em tal matéria.

Os platônicos, de fato, atribuíam o princípio das formas substanciais em substâncias separadas, cujas representações particulares acreditavam ser formas naturais implantadas na matéria; mas este principio não pode ser suficiente. Em primeiro lugar, a coisa que está a ser feita deverá ser como a que será. Outrossim, o que ocorre nas coisas naturais não é forma, mas uma mistura entre forma e matéria, pois neste caso, algo é feito para que seja. É apropriado dizer que é o composto subsistente, enquanto a forma é o meio para algo existir. Portanto, o vir a ser não é a forma correta, mas um composto, e o que faz as coisas naturais existirem não é apenas a forma, mas o composto.

Em segundo lugar, as formas existentes fora da matéria não podem ser movimentadas, pois o movimento é o ato de algo em potência, como é o caso da matéria-prima. Assim, tais formas são necessariamente imutáveis; de uma causa que é sempre a mesma, procedem formas que são sempre as mesmas . Mas isso não é evidente nas formas dos corpos inferiores, por conta do surgimento e desaparecimento de tais corpos. Os corpos celestes são os princípios das formas dos corpos corruptíveis e estes são diferentes segundo suas respectivas quedas e ascensões, causando o vir a ser o falecimento dos corpos inferiores.Um traço de ambos os princípios fica claro no próprio operar das coisas naturais: é evidente como as atividades da Natureza ocorrem com uma certa mudança e segundo um intervalo de tempo determinado, posto que há um corpo celeste, e através dele a contagem do tempo se baseia. Entretanto, por conta das substâncias intelectuais separadas, verifica-se nas operações da Natureza que estes corpos celestes procedem por caminhos fixos e com objetivos determinados, com ordem e maneira adequadas, como as coisas feitas pela habilidade do homem, de modo que a obra da Natureza parece ser a realização de um Sábio Agente. Assim, dizemos que a Natureza age com sabedoria . Ora, o trabalho do sábio é necessariamente bem ordenado, pois dizemos corretamente que essa é a característica do sábio, através de sua disposição harmoniosa.

E assim surgem as formas das coisas inferiores da sabedoria das substâncias separadas por meio do poder e do movimento dos corpos celestes, alguma ordem deve ser encontrada entre essas formas de corpos inferiores, e de tal forma, a saber: algumas são menos perfeitas e mais próximas da natureza, enquanto outras, entretanto, são mais perfeitas e mais próximos dos agentes superiores. As formas mais imperfeitas, porém, e especialmente próximas da matéria, são as formas dos elementos, dos quais os corpos inferiores são compostos por suas matérias, e estes são de fato os mais nobres e, quando removidos de uma contrariedade entre elementos, ficam próximos da uniformidade de composição, e assim tornam-se de uma forma ou de outra semelhantes aos corpos celestes, que são livres de qualquer contrariedade. Ora, o que é composto de opostos não é nenhum dos opostos em ato, mas apenas em potência. E, portanto, quanto maior a uniformidade de mistura da qual esses corpos se aproximam, tanto mais nobre é a forma que recebem de Deus. Tal é o corpo humano que, gozando de uma composição muito uniforme, como indica a excelência do tato nos homens, tem a mais nobre das formas, a saber, uma alma racional.

Os poderes e as operações devem ser proporcionais às formas de onde procedem. E assim é que as formas dos elementos que são em sua maioria materiais dão origem a qualidades ativas e passivas, por exemplo, calor e frio, umidade e secura e outras coisas semelhantes que dizem respeito à distribuição da matéria . Mas as formas dos amálgamas, ou seja, dos corpos inanimados como pedras, metais, minerais, além dos poderes e atividades que compartilham com os elementos de que são compostos, têm outras virtudes e atividades mais nobres decorrentes de formas específicas; V.g.: o ouro alegra o coração e a safira estanca hemorragia. Assim, sempre em ordem ascendente, quanto mais nobres as formas específicas, tanto mais excelentes são os poderes e operações que vêm delas, até que a forma mais nobre, a alma racional, seja alcançada, que tem poder intelectual e atividades que não apenas superam o poder e atividade dos elementos, mas também todo poder e atividade corpórea.

Agora, a partir das formas em cada extremidade da escala, devemos julgar as formas intermediárias. Pois como o poder de aquecer e resfriar está no fogo e na água como resultado de suas formas especiais, e como o poder intelectual e a atividade do homem surgem de sua alma racional, assim todos os poderes e atividades das coisas entre as quais excedem as virtudes dos elementos, surgem de suas formas próprias e remontam a princípios mais elevados e aos poderes dos corpos celestes e, ainda mais, às substâncias separadas. Pois desses princípios derivam as formas dos corpos inferiores, excetuando-se apenas a alma racional, que procede de uma causa imaterial, isto é, de Deus, que de forma alguma é produto do poder dos corpos celestes. Do contrário, não poderia ter poder intelectual e atividade totalmente livre do corpo.Portanto, como tais poderes e trabalhos são derivados de uma forma específica que é comum a todos os indivíduos da mesma espécie, é impossível para um indivíduo de uma espécie ter algum tipo de poder ou atividade além dos outros indivíduos da mesma espécie apenas porque surgiu sob uma disposição definida de corpos celestes . No entanto, é possível que em um indivíduo da mesma espécie o poder e a atividade decorrentes da espécie sejam encontrados com maior ou menor intensidade, de acordo com uma distribuição diversa da matéria e a configuração diferente dos corpos celestes no surgimento deste ou aquele indivíduo.Também não se pode dizer que tais atividades resultam do poder dos corpos celestes, porque agem apenas de forma natural sobre as coisas inferiores. E o fato de um corpo ter tal ou qual forma não o torna mais ou menos adequado para receber a impressão de um agente natural. Assim, é impossível que as imagens ou esculturas que são feitas para produzir efeitos extraordinários tenham sua eficácia através dos corpos celestes, embora pareçam ser feitas sob certa constelação. Eles só o recebem de agentes superiores que trabalham por meio de imagens e esculturas.

Assim como as imagens são feitas de matéria natural, mas adquirem sua forma por meio da habilidade humana, também as palavras humanas têm de fato sua matéria, isto é, os sons produzidos pela boca do homem, mas têm seu significado e, por assim dizer, sua forma a partir do intelecto, que expressa seus conceitos por meio de tais sons. E assim, por uma razão semelhante, as palavras humanas não têm qualquer eficácia para mudar um corpo natural pelo poder de alguma causa natural, mas apenas por alguma substância espiritual.

Pois essas obras que são efetuadas por meio de tais palavras, ou de qualquer tipo de imagem ou escultura, ou qualquer outra coisa, não são naturais, porque não surgem de uma virtude intrínseca, mas apenas de uma virtude extrínseca. De outra forma, devem ser classificadas como superstição. As atividades, entretanto, que dissemos acima, surgem das formas das coisas e são naturais, posto que procedem de princípios internos.

E então, deixe o que foi dito sobre o funcionamento e atividades ocultas ser suficiente para o presente.

sábado, 18 de agosto de 2012

Quem é Ele?

Vejo-o vindo pelo ar, num vôo lento.
Suspenso num olhar, acima de tudo clandestino contornando a paisagem escura.
Eis então que se revela descansando na janela, e me toca sem contato..
Tua face, teu amor sem dono...

Em tuas asas vem trazendo outra vez
aquelas memórias
do beijo nunca selado
que é dito no silêncio
fugidio das palavras

Não te reclamo abrigo
sou morada da ausência
presente entre o sono de dois sóis
separados
Pelo tempo do mundo.

Noutra noite aleatória,
entre o sono de dois sóis
separados pelo tempo do mundo
Ausência retrocede a morada.
Tão suave algia, radiante, que sem surpresa se acomoda.
Vejo-o vindo pelo ar,
num vôo lento
suspenso num olhar clandestino contornando a escuridão

Eis então, que se revela descansando na janela
e me toca sem contato
atravessando nódoas em reparo.
Selvagem em tua face indiferente,
teu amor sem dono
em tuas asas vem trazendo outra vez
memórias de dias em movimento...

As Asas e o Corpo

 Sei que me compreenderás completamente. Talvez, eu esteja um pouco nostálgica com algumas lembranças de minha infância. 

 Estou indo - estou chegando a lugares distantes em minha memória... Agora o chão corre depressa, as luzes brilham na  noite. Curva-se, inclina-se e sobe.  Já não toca mais o solo. Estou dentro de uma nuvem rasa. 
Afastam-se as casas, todas as moradias tornam-se pequenas e reluzentes. Agrupam-se em  vilarejos. 
 Estar acima e observar o todo sem pormenores. Embaixo, partículas, cheia de detalhes. Eu não sei se prefiro os detalhes... Ou a completude indetalhada. De certo que o todo tem organização. Mas, os detalhes são tão complexos; o jogador com uma única carta na mão a desvendar todo o baralho...

Sobe
...

Na janela, a neblina enche de claro o marrom escuro.  Raios entrecortando a paisagem invisível. É o Cumulus  Nimbus. 

O voou segue em crise. O problema aconteceu na decolagem.
No escuro, só se vê o letreiro em vermelho que pede para atar os cintos. Estou presa de pavor. A sensação a qual viajo é de chegar ao meu destino e não mais voltar. E de outro modo paradoxo a leve surpresa de  gostar de voar.

Espreitam-me algumas descobertas
.

-Lembra que  brincávamos? Nós como se fossemos crianças; eu estava dirigindo um filme na vida real, um filme em minha própria vida e se estilizaria a uma comédia romântica. Como seria estar sem roteiros, sem personagens, sem a forma a qual idealizo. Ainda possível nossas existências? 


Minha mente em fragmentos...

Acordo agora,
o relógio em formato de casa,
o interruptor do quarto é um soldado.

 Vou à escola
 e o relógio me intriga...
 Os ponteiros são de um eterno verde,
os algoritmos tem vida própria...

Num algarismo existe um universo.
No universo do relógio existe o tempo.
Eu triste por não ser a linha...
Não estou sequer na curva do tempo...

-Terei que compor frases para quebrar a barreira
entre a minha mente e os outros...

Aquela sou eu,
com culpa sentada no banquinho,
 não brinco,
não falo..
e ninguém sabe a minha culpa...

Não tenho medo do gelado...
Aquela sou eu na neve.

    Sobrevoando o mar, num momento de reflexão que acomete a quem viaja ao fitar o oceano, percebi que em toda minha vida tenho procurado por algo que não sei o nome.

Então, o homem sentado ao lado da janela começou uma troca de palavras, enquanto tremíamos no ar. 
Em um momento, a turbulência cedeu. E todos estavam aliviados, a aeromoça começou a servir os passageiros e começamos a cair.
   O homem fala  comigo tranquilamente como se aquilo não estivesse acontecendo, como se não existisse aquele momento pavoroso. Como se estivéssemos a nos olhar e a trocar palavras em um planeta vazio de imagens. Nós imagens e palavras de um planeta inteiro. Em perfeita relação de calma e ternura que estranhamente escondia-se em um pequeno universo dentro do caos. Segurou minha mão e permaneceu assim durante toda a viagem, suave e com  timidez. Protegendo a mim de todos os temores. Nada falamos sobre estarmos de mãos coladas, continuamos conversando como dois desconhecidos.
   Era proibido falar de nossas emoções. Era aquele silêncio apaixonado. O Silêncio de quando não há intimidade. Ele fala como se não fossemos morrer, como se esse momento fosse eterno, eterno na repetição do presente para sempre...

  Os minutos eram longos e eu lhe perguntava a hora a cada dois minutos, ele respondia todas as vezes, pacientemente...

  E quando o avião começou a descer depressa, víamos uma cidade se aproximar... Ele encostou ao lado da janela para que eu pudesse me aproximar. Meu rosto junto ao dele, a sua voz tranquila...

-Olha ali, que lindo! Estamos chegando, veja Brasília! Você vê por ali? Ali são as asas do avião e o meio dele, o corpo...

-Estamos chegando!  E o avião desce tão depressa...

E quando pousou, o piloto anunciou:
- Bem vindos ao aeroporto de Confins em Belo Horizonte.

Foi um pouso de emergência, havia bombeiros nos esperando na pista... Não eram as tais asas, o tal corpo...
 A Velha Senhora humilde - disse - menina, não precisa ter medo. Quando chega a hora de morrer, é a hora. Posso estar em casa, avião ou em qualquer situação e isso ocorrerá. Será na minha hora, a hora que Deus quiser. 
A inocência  de nunca ter questionado sua cultura, os seus costumes, as suas crenças. A falta de pensar sobre, a falta de ciência no olhar livrou-a do pavor. Para ela foi como uma coisa banal. Sem sofrimentos.

O homem lançou um olhar para mim, como quem contemplava comigo a inocência da senhora... Erámos indivisíveis. Pensávamos no silencio e sempre igual. Continuou com seus grandes olhos castanhos fixos em mim... Porquanto desciam as pessoas do avião, um longo olhar. E foi doce. 

Um olhar cheio de sentimentos. Senti vontade de dizer-lhe: eu te amo, e não era apenas um dizer. Era emoção que transbordava, eu sentia, eu o amava. Mas, ao invés de palavras, retribui o olhar. Com olhos de artista, com grande surpresa infantil. 


No aeroporto outro homem me esperava, trazia uma criança consigo que sorria para mim e me consolava a perda do meu mais recente amor. Só por ela foi possível essa transição. 
Ainda o vi de longe perdido por entre as pessoas e perdido em mim em meus novos momentos. Em minha nova realidade
. 
Esse sorriso terno de felicidade da criança em me rever foi tão singular quanto o meu amor... Representações nunca antes vistas por mim.. E talvez singulares no mundo inteiro. Às vezes tenho em mim expressões verdadeiras, mas, nem sozinha diante do espelho  quando é possível tirar algumas máscaras, posso revela-las. 

No espelho me pergunto, e não assimilo que aquela então sou eu... E confusa duvido ainda. Essa sou eu ou a outra que não está comigo em imagem. E em imagem não sei se meus olhos refletem a mesma imagem que outros veem... a visão não é um sentido exato.
Ah, os olhos não enxergam,  interpretam 

E sem isso não somos mais humanos e sim maquinas de repetição. Mas, tudo é repetição. Sobretudo, é original a reformulação do passado para o presente, a interpretação em si.  O mundo externo uma projeção de nosso eu. Enquanto o mundo externo não se move, move-se dentro dos olhares. De outro modo estamos presos a condenação do olhar idêntico, de regimes totalitários... Escravos de misérias conformados em suas repetições...

-Me escutas?

Sei que não gostas quando não acredito em Deus, quando não acredito no místico, quando não acredito na ciência... 
Mas vê! Eu descobri uma coisa...  Como seria possível acreditar em tais sentimentos, em tais fantasias, sem fé? 
Eu tenho religiosidade e fé e não tenho religião. A minha religião é expressa na loucura que trago para as palavras e para aquilo que ninguém pode ver...

O amor é uma religião no sentido de nada fazer sentido de não haver ciência, por não haver exatidão, verdades comprovadas...
Acredito em fantasias... Amo com tanta convicção... 

Que posso dizer que tudo que o que tenho em mim é expresso como religião. A cultura não abalou.

Com olhos cegos, eu sou incomunicável para o mundo. E te escrevo para dizer que agora, nesse momento você é a minha religião, a minha fé, como um deus e você existe único em meu mundo, em minhas metáforas que talvez não possas ver. Mas sei que sou mais sincera a ti do que ao espelho. 

E podes chegar a questionar então que o amor em mim é sempre igual e que se saíres da cena de nosso filme poderei continua-lo de mesmo modo. Não! Não é o mesmo amor. O amor está em mim como uma  fonte única... Mas os objetos são outros... A crença é outra, nunca a mesma. E gosto da tua. Gosto desse mundo. Até que seja destruída em mim a crença do teu mundo... Até que seja destruída em mim as minhas fantasias do teu mundo tão colorido.


E saio agora desse templo frio.