O cenário constitui-se num tom cinza, todas as personagens trajam-se em tons de cinza, às vezes o tom cinza tende para o branco, às vezes para o preto faz um contraste como se a peça fosse uma exibição de um filme em preto e branco...
Inicia-se com o cenário vazio. O público observa por um instante o cinza do cenário. A destruição e ruínas. Uma névoa que vai surgir do chão, algumas opções em que o público poderá sentar será num retângulo no meio da encenação. E outra parte do público assiste a peça fora do cenário. (o bilhete da peça será um par de luvas cinza de malha).
A primeira personagem a chegar à cidade fantasma, é uma espécie de filósofo, projeta-se um filme numa tela de cinema. Este filme é cinema mudo, com aspecto de uma memória não tão distante. Esse filme mostra uma criança em um balanço, a imagem em preto e branco. De dentro do filme começam a cair folhas secas reais, e começa a chover folhas na plateia. Elas espalham-se pelo chão, por essas folhas caminha, fora da tela, o filósofo que diz, a andar
(O vídeo oscila em mostrar uma criança no balanço e uma pessoa numa situação urbana.)
Anjo (andando pela cidade):
- Quando a criança era criança,
andava balançando os braços,
queria que o riacho fosse um rio,
que o rio fosse uma torrente
e que essa poça fosse o mar.
Quando a criança era criança,
não sabia que era criança,
tudo lhe parecia ter alma,
e todas as almas eram uma.
Quando a criança era criança,
não tinha opinião a respeito de nada,
não tinha nenhum costume,
sentava-se sempre de pernas cruzadas,
saía correndo,
tinha um redemoinho no cabelo
e não fazia poses na hora da fotografia.
Quando a criança era uma criança
era a época destas perguntas:
Por que eu sou eu e não você?
Por que estou aqui, e por que não lá?
Quando foi que o tempo
começou, e onde é que o espaço termina?
Um lugar na vida sob o sol não é apenas um sonho?
Aquilo que eu vejo e ouço e cheiro
não é só a aparência de um mundo diante de um mundo?
Existe de fato o Mal e as pessoas
que são realmente más?
Como pode ser que eu, que sou eu,
antes de ser eu mesmo não era eu,
e que algum dia, eu, que sou eu,
não serei mais quem eu sou?
Quando uma criança era uma criança,
Mastigava espinafre, ervilhas, bolinhos de arroz, e couve-flor cozida,
e comia tudo isto não somente porque precisava comer.
Quando uma criança era uma criança,
Uma vez acordou numa cama estranha,
e agora faz isso de novo e de novo.
Muitas pessoas, então, pareciam lindas
e agora só algumas parecem, com alguma sorte.
Visualizava uma clara imagem do Paraíso,
e agora no máximo consegue só imaginá-lo,
não podia conceber o vazio absoluto,
que hoje estremece no seu pensamento.
Quando uma criança era uma criança,
brincava com entusiasmo,
e agora tem tanta excitação como tinha,
porém só quando pensa em trabalho.
Quando uma criança era uma criança,
Era suficiente comer uma maçã, uma laranja, pão,
E agora é a mesma coisa.
Quando uma criança era criança,
amoras enchiam sua mão como somente as amoras conseguem,
e também fazem agora,
Avelãs frescas machucavam sua língua,
parecido com o que fazem agora,
tinha, em cada cume de montanha,
a busca por uma montanha ainda mais alta, e em cada cidade,
a busca por uma cidade ainda maior,
e ainda é assim,
alcançava cerejas nos galhos mais altos das árvores
como, com algum orgulho, ainda consegue fazer hoje,
tinha uma timidez na frente de estranhos,
como ainda tem.
Esperava a primeira neve,
Como ainda espera até agora.
Quando a criança era criança,
Arremessou um bastão como se fosse uma lança contra uma árvore,
E ela ainda está lá, chacoalhando, até hoje.
(Ele carrega duas latas de tinta. Dentro da lata de tinta há um pó completamente negro e na outra um completamente branco, e ele faz uma mistura entre os dois, numa alquimia e espalha pelo chão um misterioso elemento que reluz.
Começa a surgir no cenário, uma iluminação laranja esfumçada
Valmir e Estragado,
Os dois estão sentados numas caixas de papelão no chão debaixo de uma grande árvore de natal que balança...
Os dois estão a segurar na mão uma pedrinha
estão sujos, maltrapilhos e usam um chapéu coco...
Fim de tarde, Estragado tenta tirar um coturno de construção, faz força com as duas mãos gemendo. Para, exausto; descansa ofegante; recomeça mais uma vez.
Estragado: (desistindo de novo) Nada a fazer.
Valmir: (aproximando-se a passos curtos e duros, joelhos afastados) Estou quase acreditando. (fica imóvel) Fugi disso a vida toda. Dizia: Valmir, seja razoável, você ainda não tentou de tudo. E retomava a luta. (encolhe-se, pensando na luta, Vira-se para Estragado) Veja só! Você aqui de volta.
Estragado:
Estou?
Valmir:
Que bom que voltou. Pensei que tivesse partido para sempre.
Estragado:
Eu também
Valmir:
Temos que comemorar, mas como? (pensa) Levante que lhe dou um abraço. (oferece a mão a estragado.)
Estragado
(irritado) Daqui a pouco, daqui a pouco.
Silêncio...
Valmir:
(magoado, com frieza) Pode-se saber onde o senhor passou a noite?
Estragado:
No canal
Valmir:
(Espantado) Num canal! Onde?
Estragado:
(sem indicar) Logo ali, na Agamenon.
Valmir:
E eles bateram em você?
Estragado:
Bateram, mas não demais.
Valmir:
Os mesmos de sempre?
Estragado:
Os de sempre? Não sei.
Silêncio
Valmir:
Quando paro para pensar... estes anos todos... não fosse eu.. o que teria sido de você...? (Com firmeza) Não seria mais do que um montinho de ossos, neste exato momento, sem sombra de dúvida.
Estragado:
(Ofendido) E daí?
Valmir
(Melancólico) É demais para um homem só. (Pausa. Com vivacidade) Por outro lado, qual a vantagem de desanimar agora, é o que sempre digo. Deveríamos ter pensado nisso milênios atrás, em 1900.
Estragado:
Chega. Ajude aqui a tirar essa porcaria.
Valmir:
De mãos dadas, pular do alto da torre Malakoff, os primeiros da fila. Éramos gente distinta, naquele tempo. Agora é tarde demais. Não nos deixariam nem subir. (Estragado luta com a bota) O que você está fazendo?
Estragado:
Tirando minha bota. Nunca aconteceu com você?
Valmir
Sapatos a gente tira todos os dias, cansei de explicar. Por que você não me ouve?
Estragado:
(cansado) Me Ajude!
Valmir:
Dói?
Estragado
Dói! Ele quer saber se dói!
Valmir
(colérico) Tirando você, ninguém sofre. Eu não conto. Queria ver se estivesse no meu lugar, o que você diria.
Estragado:
Doeu?
Valmir:
Doeu! Ele quer saber se doeu!
Estragado:
(apontando com o indicador) De qualquer modo, você bem que poderia fechar os botões.
Valmir:
(inclinando-se) É verdade. (abotoa-se) Nunca descuide das pequenas coisas.
Estragado: O que você queria? Você sempre espera até o último minuto.
Valmir (sonhador) O Último minuto.... (Medita) custa a chegar, mas será maravilhoso. Quem foi que disse isso?
Estragado:
Por que você não me ajuda?
(A cena é cortada por uma iluminação que vem do alto, desce uma moça de classe média alta do Recife. Ela desse por um pano. Sobrevoa a cidade. Estragado e Valmir continuam a conversar, porém inaudíveis ao publico. Fazem mímica de suas conversas e vão se dispersando na luz. Até ficarem apagados em cena. A moça vai descendo devagar e passa despercebida por Valmir e estragado. )
O Anjo reaparece em cena, completamente imóvel dando a impressão de ser invisível. A iluminação só ilumina a sua sombra de homem, enquanto a moça anda por volta dele, completamente iluminada e ele uma sombra escura.
Ela dá uma volta em seu corpo, e diz:
Cecília:
Vejo-o vindo pelo ar, num voo lento.
Suspenso num olhar, acima de tudo clandestino contornando a paisagem escura.
Eis então que se revela descansando na janela, e me toca sem contato..
Tua face, teu amor sem dono...
(some a sombra do anjo)
A personagem desperta de um estado hipnótico.
Valmir pede-lhe uma esmola, mas, ela passa apressada. Quer chegar a algum lugar, a algum compromisso. Não escuta o pedido de Valmir.
Ela anda pela cidade, apenas transita, como quem transita de um lugar para outro. Sem contemplação
(O telão mostra o fluxo da av. conde da boa vista.
(continua)
- Fim do primeiro ato
(A peça pretende ter a estética do absurdo remontando a filosofia estética de Albert Camus, personagens reesignificados de Samuel Beckett, e elogio ao cinema, em linguagem pós moderna. Texto dito na linha realista com algumas quebras da quarta parede. Regionalismo moderno metáfora da metrópole recifense).