quinta-feira, 19 de maio de 2022

Dramaturgia

 

O cenário constitui-se num tom cinza, todas as personagens trajam-se em tons de cinza, às vezes o tom cinza tende para o branco, às vezes para o preto faz um contraste como se a peça fosse uma exibição de um filme em preto e branco... 

Inicia-se com o cenário vazio. O público observa por um instante o cinza do cenário. A destruição e ruínas.  Uma névoa que vai surgir do chão, algumas opções em que o público poderá sentar será num retângulo no meio da encenação.  E outra parte do público assiste a peça fora do cenário.  (o bilhete da peça será um par de luvas cinza de malha).


A primeira personagem a chegar à cidade fantasma, é uma espécie de filósofo, projeta-se um filme numa tela de cinema.  Este filme é cinema mudo,  com aspecto de uma memória não tão distante. Esse filme mostra uma criança em um balanço, a imagem em preto e branco. De dentro do filme começam a cair folhas secas reais, e começa a chover folhas na plateia. Elas  espalham-se pelo chão, por essas folhas caminha, fora da tela, o filósofo que diz, a andar

(O vídeo oscila em mostrar uma criança no balanço e uma pessoa numa situação urbana.)


Anjo  (andando pela cidade):

- Quando a criança era criança,

andava balançando os braços,

queria que o riacho fosse um rio,

que o rio fosse uma torrente

e que essa poça fosse o mar.


Quando a criança era criança,


não sabia que era criança,

tudo lhe parecia ter alma,

e todas as almas eram uma.


Quando a criança era criança,


não tinha opinião a respeito de nada,

não tinha nenhum costume,

sentava-se sempre de pernas cruzadas,

saía correndo,

tinha um redemoinho no cabelo

e não fazia poses na hora da fotografia.


Quando a criança era uma criança


era a época destas perguntas:

Por que eu sou eu e não você?

Por que estou aqui, e por que não lá?

Quando foi que o tempo

começou, e onde é que o espaço termina?

Um lugar na vida sob o sol não é apenas um sonho?

Aquilo que eu vejo e ouço e cheiro

não é só a aparência de um mundo diante de um mundo?

Existe de fato o Mal e as pessoas

que são realmente más?

Como pode ser que eu, que sou eu,

antes de ser eu mesmo não era eu,

e que algum dia, eu, que sou eu,

não serei mais quem eu sou?

Quando uma criança era uma criança,

Mastigava espinafre, ervilhas, bolinhos de arroz, e couve-flor cozida,

e comia tudo isto não somente porque precisava comer.

Quando uma criança era uma criança,

Uma vez acordou numa cama estranha,

e agora faz isso de novo e de novo.

Muitas pessoas, então, pareciam lindas

e agora só algumas parecem, com alguma sorte.

Visualizava uma clara imagem do Paraíso,

e agora no máximo consegue só imaginá-lo,

não podia conceber o vazio absoluto,

que hoje estremece no seu pensamento.

Quando uma criança era uma criança,

brincava com entusiasmo,

e agora tem tanta excitação como tinha,

porém só quando pensa em trabalho.

Quando uma criança era uma criança,

Era suficiente comer uma maçã, uma laranja, pão,

E agora é a mesma coisa.

Quando uma criança era criança,

amoras enchiam sua mão como somente as amoras conseguem,

e também fazem agora,

Avelãs frescas machucavam sua língua,

parecido com o que fazem agora,

tinha, em cada cume de montanha,

a busca por uma montanha ainda mais alta, e em cada cidade,

a busca por uma cidade ainda maior,

e ainda é assim,

alcançava cerejas nos galhos mais altos das árvores

como, com algum orgulho, ainda consegue fazer hoje,

tinha uma timidez na frente de estranhos,

como ainda tem.

Esperava a primeira neve,

Como ainda espera até agora.

Quando a criança era criança,

Arremessou um bastão como se fosse uma lança contra uma árvore,

E ela ainda está lá, chacoalhando, até hoje.

(Ele carrega duas latas de tinta. Dentro da lata de tinta há um pó completamente negro e na outra um completamente branco, e ele faz uma mistura entre os dois, numa alquimia e espalha pelo chão um misterioso elemento que reluz. 

Começa a surgir no cenário, uma iluminação laranja esfumçada


Valmir e Estragado, 

Os dois estão sentados numas caixas de papelão no chão debaixo de uma grande árvore de natal que balança... 

Os dois estão a segurar na mão uma pedrinha 

estão sujos, maltrapilhos e usam um chapéu coco...

 

Fim de tarde, Estragado tenta tirar um coturno de construção, faz força com as duas mãos gemendo. Para, exausto; descansa ofegante; recomeça mais uma vez. 

Estragado: (desistindo de novo) Nada a fazer. 

Valmir: (aproximando-se a passos curtos e duros, joelhos afastados) Estou quase acreditando. (fica imóvel) Fugi disso a vida toda. Dizia: Valmir, seja razoável, você ainda não tentou de tudo. E retomava a luta. (encolhe-se, pensando na luta, Vira-se para Estragado) Veja só! Você aqui de volta.

Estragado:

Estou?

Valmir:

Que bom que voltou. Pensei que tivesse partido para sempre. 

Estragado:

Eu também

Valmir: 

Temos que comemorar, mas como? (pensa) Levante que lhe dou um abraço. (oferece a mão a estragado.)

Estragado

(irritado) Daqui a pouco, daqui a pouco. 

Silêncio... 

Valmir:

(magoado, com frieza) Pode-se saber onde o senhor passou a noite?

Estragado:

No canal

Valmir:

(Espantado) Num canal! Onde?

Estragado:

(sem indicar) Logo ali, na Agamenon. 

Valmir:

E eles bateram em você? 

Estragado:

Bateram, mas não demais. 

Valmir: 

Os mesmos de sempre?

Estragado:

Os de sempre? Não sei. 

Silêncio

Valmir:

Quando paro para pensar... estes anos todos... não fosse eu.. o que teria sido de você...? (Com firmeza) Não seria mais do que um montinho de ossos, neste exato momento, sem sombra de dúvida. 

Estragado:

(Ofendido) E daí?

Valmir

(Melancólico) É demais para um homem só. (Pausa. Com vivacidade) Por outro lado, qual a vantagem de desanimar agora, é o que sempre digo. Deveríamos ter pensado nisso milênios atrás, em 1900. 

Estragado:

Chega. Ajude aqui a tirar essa porcaria. 

Valmir:

De mãos dadas, pular do alto da torre Malakoff, os primeiros da fila. Éramos gente distinta, naquele tempo. Agora é tarde demais. Não nos deixariam nem subir. (Estragado luta com a bota)  O que você está fazendo?

Estragado: 

Tirando minha bota. Nunca aconteceu com você?

Valmir

Sapatos a gente tira todos os dias, cansei de explicar. Por que você não me ouve?

Estragado:

(cansado) Me Ajude!

Valmir: 

Dói?

Estragado

Dói! Ele quer saber se dói!

Valmir 

(colérico) Tirando você, ninguém sofre. Eu não conto. Queria ver se estivesse no meu lugar, o que você diria. 

Estragado: 

Doeu?

Valmir:

Doeu! Ele quer saber se doeu!

Estragado:

(apontando com o indicador) De qualquer modo, você bem que poderia fechar os botões. 

Valmir:

(inclinando-se) É verdade. (abotoa-se) Nunca descuide das pequenas coisas. 

Estragado: O que você queria?  Você sempre espera até o último minuto. 

Valmir (sonhador) O Último minuto.... (Medita) custa a chegar, mas será maravilhoso. Quem foi que disse isso?

Estragado:

Por que você não me ajuda? 

(A cena é cortada por uma iluminação que vem do alto, desce uma moça de classe média alta do Recife. Ela desse por um pano. Sobrevoa a cidade. Estragado e Valmir continuam a conversar, porém inaudíveis ao publico. Fazem mímica de suas conversas e vão se dispersando na luz. Até ficarem apagados em cena. A moça vai descendo devagar e passa despercebida por Valmir e estragado. )

O Anjo reaparece em cena, completamente imóvel dando a impressão de ser invisível. A iluminação só ilumina a sua sombra de homem, enquanto a moça anda por volta dele, completamente iluminada e ele uma sombra escura.

Ela dá uma volta em seu corpo, e diz:

Cecília:

Vejo-o vindo pelo ar, num voo lento.

Suspenso num olhar, acima de tudo clandestino contornando a paisagem escura.

Eis então que se revela descansando na janela, e me toca sem contato..

Tua face, teu amor sem dono...

(some a sombra do anjo)

A personagem desperta de um estado hipnótico.

Valmir pede-lhe uma esmola, mas, ela passa apressada. Quer chegar a algum lugar, a algum compromisso. Não escuta o pedido de Valmir. 

Ela anda pela cidade, apenas transita, como quem transita de um lugar para outro. Sem contemplação

(O telão mostra o fluxo da av. conde da boa vista.


(continua)


-  Fim do primeiro ato


(A peça pretende ter a estética do absurdo remontando a filosofia estética de Albert Camus, personagens reesignificados de Samuel Beckett, e elogio ao cinema, em linguagem pós moderna. Texto dito na linha realista com algumas quebras da quarta parede. Regionalismo moderno metáfora da metrópole recifense).